Fernanda Priscila Alves da Silva
A aproximação de espaços esquecidos na cidade de Salvador, ou ainda em tantas outras cidades deste país conduz a perguntas inevitáveis: como romper silêncios que gritam? Quem são estas pessoas que circulam às margens dos espaços urbanos? Elas têm nome? Identidade? A sociedade as vê? O município as enxerga? O Estado se preocupa com elas? Com seus direitos a moradia, educação, saúde, lazer?
Circulando pela Ladeira da Montanha o que vemos? Caminhando pelo Pelourinho o que reconhecemos? Descendo a barroquinha que espaços, pessoas encontramos? Gente esquecida, casarões desabando, vida, vidas, vidas concretas. Mas quem nota? Quem percebe? De repente alguns grupos começam a se organizar: mulheres, moradores de rua, catadores de papel. Quem vê? Os esquecidos se veem e começam a gritar, a romper os silêncios… Os ecos, entretanto precisam se fortalecer e assim é necessário pensar, repensar o espaço urbano, os direitos de mulheres, homens, crianças, idosos que se encontram nos espaços-margem.
Ao fazer uma retrospectiva sobre o processo de crescimento da população nas cidades é possível voltar o olhar para os países denominados desenvolvidos. Nestes o ritmo lento de crescimento da população dos anos 1930 seguiu-se uma retomada depois da guerra, mais particularmente na URSS e na América do Norte. Na Europa, no entanto, o ritmo de crescimento da década de 1950 alcançou apenas o registrado no período 1920-1930, que foi de 9 %. Na Ásia o crescimento representou 60% do aumento da população mundial.
A nova economia internacional, manifesta a partir da Segunda Guerra Mundial algumas características: internacionalização e multiplicação das trocas, preponderância da tecnologia e a concentração dela decorrente, solidariedade crescente entre os países, modificações da estrutura e força do consumo. Neste processo, o êxodo rural, é um fenômeno complexo nos países ditos subdesenvolvidos. De acordo com Milton Santos: “O crescimento devido ao movimento migratório é, muitas vezes, superior ao crescimento natural. O crescimento natural é a consequência de dois fenômenos conjugados: um forte aumento de natalidade, uma baixa sensível na mortalidade.”[1]
O processo de composição demográfica da população urbana apresenta-se então variada, desequilibrada e em evolução rápida. Ela acaba sendo um reflexo do dinamismo demográfico geral. Vale ressaltar, no entanto, que este processo de crescimento não está dissociado do contexto politico, social, econômico. Na perspectiva de Boaventura de Souza Santos,
Uma revisão dos estudos sobre os processos de globalização mostra-nos que estamos perante um fenômeno multifacetado com dimensões econômicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo. […] O aumento dramático entre países ricos e países pobres e, no interior de cada país, entre ricos e pobres, a sobrepopulação, a catástrofe ambiental, os conflitos étnicos, a migração internacional massiva, a emergência de novos Estados e a falência ou implosão de outros, a proliferação de guerras civis, o crime globalmente organizado, a democracia formal como condição política para a assistência internacional, etc.[2]
Neste processo, uma das transformações mais dramáticas produzidas pela globalização econômica neoliberal se encontra na enorme concentração de poder econômico por parte das empresas multinacionais. Segundo este autor, “das 100 maiores economias do mundo, 47 são empresas multinacionais; 70% do comércio mundial é controlado por 500 empresas multinacionais; 1% das empresas multinacionais detém 50% do investimento direto do estrangeiro.”[3]
Esta estrutura de classe gera novas desigualdades sociais que tem sido amplamente reconhecida pelas agencias multilaterais etem liderado este modelo de globalização, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.
Segundo o relatório de Desenvolvimento do Banco Mundial de 1995, o conjunto dos países pobres, onde vive 85,2% da população mundial, detém apenas 21,5% do rendimento mundial, enquanto o conjunto dos países ricos, com 14, 8% da população mundial detém 78,5% do rendimento mundial. Um família africana média consome hoje 20% menos do que consumia há 25 anos. O aumento das desigualdades tem sido tão acelerado e tão grande que é adequado ver as últimas décadas como uma revolta das elites contra a redistribuição da riqueza com a qual se põe fim ao período de uma certa democratizaçãoda riqueza iniciado no final da Segunda Guerra Mundial.[4]
De acordo com esta perspectiva a economia é dessocializada e o conceito de consumidor substitui o conceito de cidadão. O critério de inclusão deixa de ser direito e passa a ser solvência. Os pobres não entram na lógica do mercado, pois não são consumidores. Os pobres se encontram assim nos espaço-margem e desde este lugar não são vistos ou percebidos. Neste sentido, o processo de luta e rompimento de silêncios consiste em ir à contra mão e busca rompercom esta lógica, ou ainda, criticizar no sentido de questionar o processo de distribuição de renda, de estabelecimento dos direitos.
No campo das praticas capitalistas globais, a transformação contra hegemônica consiste na globalização das lutas que tornem possível a distribuição democrática da riqueza, ou seja, uma distribuição assente em direitos de cidadania, individuais e coletivas, aplicados transnacionalmente. […] Temos o direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza e a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.”[5]
Romper os silêncios a cerca de mulheres e grupos excluídos, grupos de pessoas que se encontram nos espaços-margem significa pensar na construção de um outro mundo, como bem entendeu o Fórum Social Mundial. As bases materiais do período atual são a globalização perversa vigente nesta sociedade. Nesta lógica tudo se converte em mercadoria, até os corpos de mulheres, corpos são colocados como objetos de compra e venda. Contra esta lógica, no entanto, o processo de rompimento de silêncios insiste em impulsionar a emergência da construção de uma nova história. Segundo Milton Santos existem alguns indicativos da emergência desta nova historia:
O primeiro desses fatos é a enorme mistura de povos, raças, culturas, gostos, em todos os continentes. A isso se acrescente, graças aos progressos da informação, a mistura de filosofias, em detrimento do racionalismo europeu. Um outro dado de nossa era, indicativo da possibilidade de mudanças, é a produção de uma população aglomerada em áreas cada vez menores, o que permite um ainda maior dinamismo àquela mistura entre pessoas e filosofias.[…]Trata-se da existência de uma verdadeira sociodiversidade, historicamente muito mais significativa que a própria biodiversidade. Junte-se a esses fatos a emergência de uma cultura popular que se serve dos meios técnicos antes exclusivos da cultura de massas, permitindo-lhe exercer sobre esta última uma verdadeira revanche ou vingança.[6]
A luta na contra mão da história, ou ainda no processo de questionamento da lógica capital aguça os sentidos da população que canta com Titãs: “A gente quer comida, diversão e arte. A gente não quer só comida. A gente quer saída. Para qualquer parte…”.A busca de saídas, de rompimento com invisibilização, com a abertura dos olhos para quem se encontra nos espaços-margem move, desloca, desinstala mulheres e homens que se encontram em um processo de transformação social. Neste processo os pobres tem seu papel.
O exame do papel atual dos pobres na produção do presente e do futuro exige, em primeiro lugar, distinguir entre pobreza e miséria. A miséria acaba por ser a privação total, com o aniquilamento, ou quase da pessoa. A pobreza é uma situação de carência, mas também de luta, um estado vivo, de vida ativa, em que a tomada de consciência é possível. Miseráveis são os que se confessam derrotados. Mas os pobres não se entregam. Eles descobrem cada dia formas inéditas de trabalho e luta. Assim, eles enfrentam e buscam remédio para suas dificuldades. Nessa condição de alerta permanente, não tem repouso intelectual. A memória seria inimiga. A herança do passado é temperada pelo sentimento de urgência, essa consciência do novo que é, também, um motor do conhecimento.[7]
A politica assumida pelas mulheres e homens em situações vulneráveis é baseada no cotidiano vivido por todos/as, ou seja, segundo Milton Santos, ela é alimentada pela simples necessidade de continuar existindo”. Neste mundo complexo, pode escapar aos pobres o entendimento sistêmico do sistema do mundo. Este lhe aparece estranho, constituído de causas próximas e remotas, de motivações concretas e abstratas, pela confusão entre discursos e as situações, entre a explicação das coisas e a sua propaganda. Mas estas mulheres e homens são capazes de romper silêncios e questionar os sistema vigente desde seus espaços-margem.
Bibliografia
SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). A globalização e as Ciências Sociais. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2005.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 20 ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.
SANTOS, Milton. Manual de Geografia urbana.3 ed. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008
[1]SANTOS, Milton. Manual de Geografia urbana.3 ed. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2008, p. 35.
[2]SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). A globalização e as Ciências Sociais. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 26.
[4]SANTOS,2005, p. 35.
[6]SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 20 ed. Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 20-21.
[7]SANTOS, 2011, p. 132.