Regulamentação da prostituição: Pontos entrecortados de uma discussão complexa

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Isadora Muniz de Souza, Louraine Carvalho e Fernanda Alves da Silva*
Ao longo de todo o processo histórico da sociedade o tema da prostituição traz visões ambíguas e divergentes, onde ao mesmo tempo em que as mulheres que vivenciam essa realidade sofrem com o preconceito e forte estigmatização, que está em sua maioria justificado pelas normas e moral de um contexto patriarcal, essa mesma sociedade faz “uso” das mesmas chegando muitas vezes a afirmar ser um “mal necessário”. 
A prostituição tem adquirido um caráter de massa e se espalha cada vez mais pelo mundo inteiro. A pornografia é um exemplo de como ela se expande. A globalização neoliberal é um fator dominante na decolagem da prostituição e do tráfico de pessoas. Esta dita globalização tem traços específicos conforme nos aponta Boaventura de Souza Santos, ou seja, a vida é organizada em torno do consumo, e por outro lado, deve se bastar sem normas: ela é orientada pela sedução, por desejos sempre crescentes e quereres voláteis- não mais por regulação normativa.
Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpetua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável. A subjetividade do sujeito, e a maior parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável. A característica mais proeminente da sociedade de consumidores- ainda que cuidadosamente disfarçada e encoberta- é a transformação dos consumidores em mercadorias.¹
A partir dessa premissa, pensar na prostituição, exige um amplo reconhecimento dessa situação aliada a laços complexos que devem partir principalmente da história de vida das mulheres. De acordo com Gey Espinheira “apesar da nítida evidencia das pressões econômicas e sociais na formação da prostituta e, por conseguinte, da prostituição, há os que procuram explicar o fenômeno partindo do pressuposto de que as causas são individuais, endógenas”. Isso implica desconsiderar as histórias de vida das mulheres inseridas nesse contexto, que em ampla escala iniciam sua experiência nessa atividade laboral ainda meninas, onde escolhas (se o termo pode ser usado com crianças), situações limites, contextos sócios familiar, violências e violações não são levadas em consideração, de modo que a discussão sobre a regulamentação da prostituição precisa incluir essas variedades de realidades.
A discussão que tem sido feita no sentido de entender a prostituição como uma opção é antes de tudo uma compreensão que leva em consideração apenas um lado do contexto, principalmente reconhecendo que na sociedade que em que vivemos as opções, todas elas, de certa forma são opções pré escolhidas. Isto não significa dizer um determinismo no sentido de que não há escolhas mas significa não desconsiderar a complexidade da discussão. Segundo os relatos das mulheres atendidas pelo Projeto Força Feminina, a escolha de permanecer, sair ou optar pela prostituição, está condicionada a questões sociais, entre elas a escolarização, que promoveria a inserção das mulheres em outros campos de trabalho. 
Admitir a própria impotência e limitação, como vimos em nossas pesquisas, é um recurso que não está disponível para todos os indivíduos e todas as classes sociais, especialmente porque pressupõe que se visualizem outras possibilidades de ser “gente”, isto é, conceber-se de outra maneira, ser capaz de se autorremodelar. E isso requer tanto condições cognitivas quanto psicossociais que não estão disponíveis para os membros da ralé. (MATOS, pag. 199).²
Vale ressaltar que no Brasil a prostituição não é crime, nem é contravenção penal se prostituir, por isso o termo legalização comumente utilizado não seria o correto, e sim regulamentação. O Projeto de Lei Gabriela Leite, que regulamenta a atividade dos profissionais do sexo, está objetivado entre outras coisas na garantia do acesso aos direitos à saúde, trabalho, segurança pública e dignidade humana, além do combate a exploração sexual pelo controle e fiscalização das casas de prostituição. Ora, não estaria essa lei, reafirmando direitos já garantidos pela Constituição Federal de 1988?  Como a Lei garantirá controle e fiscalização de casas de prostituição, se as mesmas têm sido mantidas em nosso país, mesmo sendo considerado crime, sem nenhuma fiscalização, afinal, só no Centro Histórico de Salvador, relatos crescem de violências e explorações a que as mulheres são submetidas nesses locais inclusive sendo mortas por clientes? A quem caberá essa fiscalização? Em que Lei, essas pessoas estarão amparadas em casos de violência, se nas Delegacias Especializadas de Atendimento a Mulher, por exemplo, essas mulheres não estão amparadas pela Lei Maria da Penha?
Não cabe negar a regulamentação, mas priorizar o entendimento de que esta medida no país onde a função controle é falha favorecerá ainda mais na exploração e lucratividade de quem mantêm essas casas.  Em alguns países onde a prostituição foi regulamentada, uma das visões era retirar as mulheres da rua (trazer para o “privado”, reforçar o processo de invisibilidade social), no entanto o resultado tem sido contrário visto que as mesmas optam por se prostituir nas ruas para escapar do controle e exploração dos novos ”empresários do sexo”. Só nos primeiros três anos a Holanda registrou um aumento de 260% no tráfico de mulheres no país, além do aumento no número de bordéis, assim como cabe a análise das 75% das mulheres em situação de prostituição na Alemanha que são estrangeiras, assim como as dificuldades encontradas pela Austrália desde os anos 80, após a legalização , de combater o tráfico de mulheres.
De modo que o convite acerca desse tema exigirá do nosso país um aprofundamento de variadas questões que perpassam todo o contexto da prostituição, e mais, considerar as milhares de vozes de mulheres que vivenciam essa realidade e estão invisíveis a toda a sociedade e são essas vozes que precisam ser ouvidas, de mulheres da Ladeira da Montanha, da Praça da Sé, da ladeira da Conceição e de tantas outras ladeiras empobrecidas e massacradas de nosso país. 
Referências Bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Tradução de Carlo Alberto Medeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. ¹
MATOS, Patrícia. A ralé brasileira: quem e como vive. Editora UFMG, Jessé Souza e Colaboradores, BH, 2009., capitulo 9: a dor e o estigma da puta pobre.²

*As autoras são Educadoras Sociais do Projeto Força Feminina que integra a Rede Oblata de Pastoral do Instituto das Irmãs Oblatas do Santíssimo Redentor. O Projeto situa-se no Centro Histórico, rua:Saldanha da Gama, 19. Pelourinho.

Conteúdos do blog

As publicações deste blog trazem conteúdos institucionais do Projeto Força Feminina – Unidade da Rede Oblata Brasil, bem como reflexões autorais e também compartilhadas de terceiros sobre o tema prostituição, vulnerabilidade social, direitos humanos, saúde da mulher, gênero e raça, dentre outros assuntos relacionados. E, ainda que o Instituto das Irmãs Oblatas no Brasil não se identifique necessariamente com as opiniões e posicionamentos dos conteúdos de terceiros, valorizamos uma reflexão abrangente a partir de diferentes pontos de vista. A Instituição busca compreender a prostituição a partir de diferentes áreas do conhecimento, trazendo à tona temas como o estigma e a violência contra as mulheres no âmbito prostitucional. Inspiradas pela Espiritualidade Cristã Libertadora, nos sentimos chamadas a habitar lugares e realidades emergentes de prostituição e tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, onde se faz necessária a presença Oblata; e isso nos desafia a deslocar-nos em direção às fronteiras geográficas, existenciais e virtuais.   

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