A cineasta Dea Ferraz foi investigar como os homens enxergam as mulheres e o resultado está em ‘Câmara de Espelhos’
Uma inquietação pessoal resultou em Câmara de Espelhos, um filme de uma hora e 16 minutos que mostra como os homens enxergam as mulheres. Em 2012, a cineasta pernambucana Dea Ferraz, incentivada pela tese defendida por alguns sociólogos de que a identidade da gente se constrói a partir do olhar do outro, começou se perguntar qual a imagem que era feita dela enquanto mulher.
“Não era engajada em nenhum movimento feminista, nem nessas questões de gênero, mas fiquei pensando a partir da tese, se esse outro é o homem, como ele me vê, como me olha, como olha para as mulheres. O filme nasce a partir dessa vontade.”
A cineasta, então, começou um trabalho de pesquisa e produção que, com ajuda da professora de Direito Tatiana Oliveira, da Universidade Federal da Paraíba, reuniu imagens que retratam as mulheres em diversas situações. “Só essas imagens parecem que já dão um filme, sobre como a mídia mostra a mulher. Isso já diz muito sobre a sociedade em que a gente vive.” Com o roteiro em mão, Dea publicou um anúncio para atrair homens dos mais diversos meios sociais e idade.
O anúncio dizia:
“Já imaginou suas opiniões e reflexões na tela do cinema?
Se você é homem, ator ou não, tem entre 18 e 80 anos, mora na Região Metropolitana do Recife e quer participar de um filme documentário, procure-nos e agende seu teste.”
O resultado foi surpreendente.
São 76 minutos de reflexões masculinas sobre a mulher. São 76 minutos que deixam claro o tanto que o machismo, por meio da cultura do estupro e culpabilização da vítima, está naturalizado. Algumas declarações são chocantes e colocam a mulher como cidadãs de segunda categoria:
“A mulher vem depois do homem. Primeiro Deus, depois o homem aí a mulher, em seguida, e depois os filhos.”
“Meu sonho é casar com uma mulher muda, surda e boa doméstica. Com essa nova lei está caro contratar uma doméstica.“
“Se ela sai com uma roupa dessas, ela quer o quê?”
“Como condenar um homem que está em uma vulnerabilidade emocional como essa [após identificar uma traição]?”
No filme, os homens são colocados em uma sala, na qual há um infiltrado que, em determinados momentos, guia o debate sem interferir. Para tirar a ideia do papel, Dea se inspirou na ideia de filme dispositivo. “É um modelo que só existe a partir do acionamento de um dispositivo específico; ele pressupõe algumas regras de funcionamento ao mesmo tempo em que ele se abre para o acaso porque a gente nunca sabe como o personagem vai reagir. Nesse caso, são homens normais. Pensando nisso, ao mesmo tempo, também estava estudando sobre documentários na diversidade, uma coisa de como filmar o inimigo, como filmar alguém que eu não necessariamente admiro.”
A proposta era fazer uma denúncia, “jogar luz nesse universo masculino, nesse universo fechado”.
“Para você ter ideia, quando acabaram as filmagens, eu fiquei com medo de andar na rua. Era como se eu tivesse acessado uma lógica do pensamento masculino que eu não conhecia, podia até imaginar, mas naquele espaço da caixa estando por trás sem poder mexer, sem poder falar, foi tão fisicamente intensa a experiência que eu comecei a ter medo de andar na rua. Foi como se eu tivesse entendido como os homens me olham, eles me olham como um objeto. Acham que eu estou aqui à disposição deles.”
O que mais chocou a cineasta foi a naturalização das falas.
“O filme mostra o quanto o machismo está na constituição da gente enquanto gente. Isso para mim, é muito forte. E a incapacidade deles de se colocarem no lugar da mulher. Fico pensando se eu teria a capacidade de me colocar no lugar do homem. Eu acho que sim porque acho que a mulher naturalmente se coloca no lugar do outro. Não sei se é porque nos fomos mais oprimidas, acho que quando você sofre a opressão, você tem mais capacidade para se abrir, para entender o outro como igual, e os caras não. Isso me impressionou muito.”
Câmara de Espelhos
O longa fez sua estreia no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro no mesmo dia em que a Datafolha divulgou a pesquisa que mostra que um em cada três brasileiros acredita que ‘a mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada’ e ao lado do filme “Precisamos falar do assédio”, de Paula Sacchetta.
“Comecei o filme há quatro anos, não imaginava que seria lançado em um momento como este, de um golpe, machista, fascista,elitista. Nesse contexto, a gente tem que se posicionar, mostrar de que lado estamos nessa história. E o filme mostra o nosso lado. Desejei que o filme pudesse ser um instrumento de reflexão, usado por todos os movimentos, usado pelos coletivos, pelas universidades, independente do circuito de festivais.”
O documentário tem produção-executiva de Carol Vergolino, roteiro de Dea Feraz e Joana Collier. Duração 76 minutos. Classificação indicativa: Livre. Ainda sem data para estreia no circuito nacional.