“Quarentena? Não para todos! Impactos da pandemia da COVID-19 para a população negra

Compartilhar

 

O novo corona vírus já infectou mais de sete milhões de pessoas pelo mundo com mais de 400 mil óbitos. É uma doença com uma taxa altíssima de transmissibilidade. O vírus causador da COVID-19 não respeita fronteiras! Jovens, idosos, ricos, pobres, brancos, indígenas ou negros podem vir a ser infectados. A doença não escolhe idade, gênero, classe social ou raça. Mas, como explicar o grande número de pessoas negras se infectarem e morrerem, principalmente no Brasil, já que o vírus é “democrático”?

A maioria da população brasileira é composta por pessoas negras, 55,8% dos brasileiros e brasileiras se autodeclaram pretos/as ou pardos/as. Entretanto, a estrutura racista da sociedade brasileira coloca a população negra em situação de vulnerabilidade social. As desvantagens em que vivem negros e negras no Brasil vai desde o mercado de trabalho – são a maioria no trabalho informal, precarizado, posição subalternizadas e/ou exposta ao desemprego – a educação, falta de saneamento básico e acesso a serviço de saúde.

Herdamos esse cenário de desvantagens sociais do período escravocrata, africanos e africanas foram sequestrados de suas terras e forçados/as ao trabalho escravo por mais de 300 anos. Com o fim da escravidão, o Brasil entrou no pós-abolição criminalizando pessoas negras. Não havia debates explícitos sobre os conflitos raciais em que vivíamos e ainda vivemos. A partir desse pacto de silenciamento o país foi construindo o mito de democracia racial onde “todas as raças vivem em harmonia” e que “somos todos iguais”. Mas, não somos todos iguais e nossas formas de viver e morrer são muito diferentes.

Como vimos, vivemos em uma sociedade onde a estrutura racista determina a forma de nascer, adoecer e morrer de pessoas negras e essa mesma estrutura coloca a população negra em situação de vulnerabilidade social. Os impactos sociais que uma pandemia causa é que ela escancara todas as desigualdades sociais existentes, entre elas a desigualdade em saúde.

“A população negra é levada a escolher entre trabalhar e correr o risco de se infectar pelo coronavírus ou ficar em casa sem nenhum rendimento e passar fome.”

A maioria das pessoas infectadas pelo coronavírus que foram a óbito, eram pessoas que tinham uma doença crônica preexistente como a diabetes, hipertensão, doença falciforme, tuberculose, asma etc. e idosos. Mas, não somente os idosos e pessoas com doenças crônicas são afetadas pela COVID-19, pessoas jovens também estão morrendo e isso porque estamos diante de uma população adoecida que não tem uma alimentação saudável e nem condições adequadas de vida. No Brasil existe mais de 11 milhões de pessoas que vivem nas periferias, favelas e/ou comunidade se nossa realidade é diferente dos países europeus, não dá para utilizar as mesmas estratégias para o enfrentamento ao coronavírus. Se preconiza o isolamento social e as autoridades públicas – quando essas não divergem entre si – dizem que temos que ficar em casa. Mas, estamos numa sociedade onde se naturaliza que a população periférica e negra“pulano esgoto e não acontece nada”, nas palavras do nosso presidente. Só que acontece! Mas, fica oculto, fora das estatísticas e só quem está e conhece a periferia sabe que a população adoece por falta do básico. Nessas comunidades não chega água, não chega álcool em gel, não chega saneamento básico, mas chega a polícia alvejando corpos negros como foi o caso do menino João Pedro, 14 anos, que estava em casa em São Gonçalo/RJ e foi morto por policiais com um tiro na barriga. E o que dizer para quem não tem casa? A população em situação de rua, majoritariamente de negros e negras,vive à margem em um processo de invisibilidade. Eis que mais uma vez o racismo vulnerabiliza a vida das pessoas negras. As estratégias usadas ao combate do coronavírus como lavar as mãos, usar álcool em gel e usar máscaras não faz sentido para a população em situação de rua, essa população não tem nem acesso a água.

Estamos divididos/as entre aqueles/as que podem fazer quarentena e/ou trabalhar em casa e as pessoas que não têm o isolamento social como uma opção. Lembrando que a pandemia da COVID-19 chegou ao Brasil através das pessoas de classes altas e médias que estavam viajando pela Europa e Estados Unidos. O vírus, inicialmente,se concentrou nos bairros nobres e começou a se espalhar pela periferia através do contato dessas pessoas de classes privilegiadas com seus/as subordinados/as: empregadas domésticas, porteiros, manobristas etc. Não podemos esquecer que a maioria das trabalhadoras domésticas são mulheres negras. São mulheres que, muitas vezes, exercem o papel da chefe de família e não têm a opção de ficar em casa cuidando de seus/as filhos/as, de sua família. Na verdade, nunca tiveram o cuidado integral da própria família como prioridade pois tinham que sair para cuidar das famílias de suas patroas. Um dos primeiros casos de óbito pela COVID-19 no Brasil foi de uma mulher de 63 anos, com diabetes e hipertensa, empregada doméstica, moradora do Rio de Janeiro. Seus patrões chegaram da Itália infectados e Dona Cleonice não sabia, continuou trabalhando, se infectou, voltou para casa e morreu logo em seguida. Outra trabalhadora doméstica, dessa vez em Pernambuco, optou por continuar trabalhando, por necessidade, levando seu filho, Miguel de cinco anos, para casa de seus patrões. Enquanto Mirtes Souza, a mãe de Miguel, levava o cachorro para passear, deixou seu único filho aos cuidados da patroa, Sari Corte Leal, que sem paciência e um mínimo de responsabilidade, deixou-o sozinho no elevador. Miguel foi parar no 9º andar, numa área sem proteção, caiu e morreu. Mirtes vive o luto por perder seu filho, pois não tinha a opção de ficar em casa cuidando dele e se protegendo inclusive dos patrões que tinham contraído a COVID-19.

A população negra é levada a escolher entre trabalhar e correr o risco de se infectar pelo coronavírus ou ficar em casa sem nenhum rendimento e passar fome. Tanto Dona Cleonice quanto Mirtes Souza são mulheres negras que, historicamente, se dedicaram às famílias privilegiadas, famílias brancas e não tiveram tempo de cuidar de si e dos seus filhos/as. Opressões de raça, classe social e gênero atravessam os corpos e vidas dessas mulheres. 

O racismo desumaniza os corpos negros. A estrutura racista em que a sociedade brasileira está ancorada enxerga que algumas pessoas, por causa da cor da pele, são menos humanas que outras. Para a população negra a humanidade lhe é negada! E quando negamos a humanidade, o/a outro/a sofrerá com qualquer tipo de violência, até a morte. É como se os corpos negros tivessem uma “licença para matar” seja pela polícia, ou ter que trabalhar em meio a pandemia por precisar de uma renda ou a falta de atendimento de qualidade em serviços de saúde ou por falta de acesso a recursos básicos. Essa é uma política de morte, a chamada necropolítica, conceito elaborado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe.

O governo federal, durante a pandemia do coronavírus, instituiu o auxílio emergencial de R$600,00 para pessoas que não puderam continuar trabalhando, perderam seus empregos, autônomos e para microempreendedores individuais. Mas, por causa da burocracia e da falta de vontade política cerca de 11 milhões de pessoas ainda não receberam o benefício, segundo os dados da Agência Brasil. A maioria das pessoas negras, que são vulnerabilizada pela estrutura racista, estão cadastradas para receber o benefício. Só que a barriga não espera! E mais uma vez somos “nós por nós”. Várias entidades, ongs etc. se organizam para minimizar os efeitos devastador da COVID-19 nas periferias e comunidades.

As estratégias utilizadas para enfrentar o novo coronavírus não podem ser pensadas de forma individuais, precisam ser coletivas. Medidas protetivas não podem ser só pensada para as classes privilegiadas. Se faz necessário adequar o enfrentamento a pandemia para as classes populares.Elaborar um plano emergencial de proteção às periferias e comunidades (Quilombolas, ribeirinhos, marisqueiras etc.) para distribuição de alimentos e produtos de higiene, renda de pelo menos um salário mínimo enquanto perdure a crise sanitária para garantira a sobrevivência das pessoas, suspender as tarifas de água, luz e outras ações emergenciais. Importante ressaltar que o SUS é uma grande arma para enfrentar o coronavírus.

O Sistema Único de Saúde vem sendo sucateado desde sua criação na década de 1990 e com a PEC 55/PEC 241, que congela os investimos no SUS por 20 anos, sacrifica ainda mais as pessoas que o utilizam, majoritariamente os usuários/as do SUS são negros e negras. Precisamos fortalecer o nosso sistema de saúde com mais recurso. Também precisamos pensar, discutir e colocar em prática a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, pois os indicadores e riscos, como foi discutido até aqui, incidem sobre a população negra, é necessário colocar a política como centro do enfrentamento à COVID-19.

É muito importante orientarmos a população negra sobre a pandemia, mas é importante, também, cobrarmos do Estado o papel dele. Existe a necessidade de ficar em casa, o isolamento social ainda é a melhor forma de barrar a transmissão rápida do coronavírus. Estamos falando de vidas e “vidas negras importam”, assim como todas as outras, mas são as vidas negras que estão sob maior ameaça devido ao contexto que estão submetidas. Lave as mãos, se puder fique em casa, se proteja e proteja os seus.

 

Referências:

 Agência Brasil. Disponível em:<https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-06/pedidos-de-auxilio-emergencial-em-analise-somam-11-milhoes>. Acesso em: 09 jun. 2020.

Coronavírus (COVID-19). Google Notícias: Disponível em: <https://news.google.com/covid19/map?hl=pt-BR&gl=BR&ceid=BR:pt-419> Acesso em: 09 jun. 2020.

Coronavírus: Um olhar atento às comunidades vulneráveis. Revista Brasil de Fato. Disponível em: <https://www.brasildefators.com.br/2020/04/02/coronavirus-um-olhar-atento-as-comunidades-vulneraveis> Acesso em: 09 jun. 2020.

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002.

Dados do IBGE, Censo 2010:  Disponível em <https://censo2010.ibge.gov.br/> Acesso em: 08 jun. 2020.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Traduzido por Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.

 

*Reflexão de Jucidalva Gomes: Antropóloga e mestranda em Saúde Coletiva pela Universidade Federal da Bahia. Atua como pesquisadora nas áreas da saúde da população negra, doença falciforme, raça, racismo, gênero e interseccionalidade. 

 

Saiba mais sobre nós:

♥ Instagram

Facebook

 

Conteúdos do blog

As publicações deste blog trazem conteúdos institucionais do Projeto Força Feminina – Unidade da Rede Oblata Brasil, bem como reflexões autorais e também compartilhadas de terceiros sobre o tema prostituição, vulnerabilidade social, direitos humanos, saúde da mulher, gênero e raça, dentre outros assuntos relacionados. E, ainda que o Instituto das Irmãs Oblatas no Brasil não se identifique necessariamente com as opiniões e posicionamentos dos conteúdos de terceiros, valorizamos uma reflexão abrangente a partir de diferentes pontos de vista. A Instituição busca compreender a prostituição a partir de diferentes áreas do conhecimento, trazendo à tona temas como o estigma e a violência contra as mulheres no âmbito prostitucional. Inspiradas pela Espiritualidade Cristã Libertadora, nos sentimos chamadas a habitar lugares e realidades emergentes de prostituição e tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, onde se faz necessária a presença Oblata; e isso nos desafia a deslocar-nos em direção às fronteiras geográficas, existenciais e virtuais.   

Compartilhar

2 comentários sobre ““Quarentena? Não para todos! Impactos da pandemia da COVID-19 para a população negra

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *