Artigo: Autoconhecimento: a procura de si mesmo

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Fernanda Priscila Alves da Silva


A atualidade nos apresenta diversos problemas que são denominados: infelicidade, incapacidade para tomar uma decisão referente às escolhas que devem ser feitas, desespero generalizado, falta de objetivo na vida e assim por diante. Neste contexto a busca de conhecer a si mesmo torna-se cada vez mais um grande desafio.

De acordo com as reflexões trazidas por Bauman o período atual marcado pela globalização não deve ser analisado apenas sob o ponto de vista econômico, mas também e fundamentalmente sobre seus efeitos na vida cotidiana. Em sua perspectiva, esta sociedade tem tornado incertas e transitórias as identidades sociais, culturais e sexuais. Por isso, a reflexão acerca da identidade, do autoconhecimento, da procura de si mesmo tem sido de grande relevância por um lado e de grande desafio por outro.

Rollo May, um dos maiores psicanalistas do século XX, mostra em suas obras que o problema fundamental do ser humano no fim do século XX, e posteriormente no século XXI é o vazio. Ele expressa que isto não significa apenas que as pessoas ignorem o que querem ou desejam, mas frequentemente não tem ideia do que sentem.

Quando falam sobre autonomia, ou lamentam sua incapacidade para tomar decisão – dificuldades presentes em todas as épocas – torna-se logo evidente que seu verdadeiro problema é não ter uma experiência definida de seus próprios desejos e necessidades. Oscilam desse modo para aqui e para ali, sentindo-se dolorosamente impotentes porque ocas vazias. O que as leva a buscar ajuda talvez seja, por exemplo, o fato de romperem sempre seus relacionamentos amorosos, ou não conseguirem concretizar seus planos.[1]

Em seus estudos May, mostra que a situação mais nítida de uma vida vazia é a das pessoas que habitam os grandes centros urbanos, que se levantam à mesma hora todos os dias, tomam o mesmo ônibus, encontram as mesmas pessoas, executam as mesmas tarefas, almoçam nos mesmos restaurantes, voltam para casa nos mesmos ônibus, ou sejam, levam uma vida rotineira  e mecânica.  A sensação de vazio apresenta muitas vezes a incapacidade para fazer algo de eficaz a respeito da própria vida e do mundo em que vivemos. Erich Fromm observou que neste contexto as pessoas deixaram de viver sob a autoridade da Igreja ou de leis morais, mas se submetem a “autoridades anônimas”, como por exemplo, a opinião pública a mídia de modo geral. Basta que observemos como acompanhamos ou nos deixamos acompanhar, curtir, comentar, compartilhar informações nas redes sociais[2].
No presente contexto outra característica que se apresenta é a solidão. Assim, a sensação de vazio e a solidão andam juntas. Quando por exemplo uma pessoa fala do rompimento de uma relação amorosa raramente fala da tristeza ou da perda, mas sim de um sentimento de vazio, ou seja, a perda parece “deixar um buraco”.

A sensação de isolamento ocorre quando a pessoa se sente vazia e amedrontada, não apenas porque deseja sentir-se protegida da multidão, como um animal selvagem se resguarda vivendo em bandos. A ânsia pela proximidade dos outros não é também um simples desejo de preencher o vácuo interior, embora esta seja, com certeza, uma faceta de necessidade de companheirismo humano de que se sente ansioso. O motivo mais fundamental é que o ser humano adquire sua primeira experiência do self no relacionamento com seus semelhantes e quando está sozinho, desligado de outras pessoas, teme perder esta experiência[3].
Para além do vazio e a solidão outros elementos surgem como desafios no contexto atual sendo eles: a ansiedade, a depressão, o individualismo, a sociedade “fluida” como aponta Bauman, a competitividade, entre outros. Diante desta realidade a construção da identidade ou ainda o reconhecimento da identidade, o processo de autoconhecimento o que pressupõe perguntas relacionadas ao sentido da vida, da existência, da morte ficam cada vez mais fragmentadas. Nos séculos passados, pertencer a uma comunidade ou a um grupo eram elementos que andavam juntos com a questão da identidade, ou seja, o fato de fazer parte de uma determinada comunidade ou grupo mostrava de certa forma quem cada pessoa era. Atualmente, percebe-se que “pertencimento” e “identidade” não tem a solidez que antes tinha e por isso não são garantias de toda uma vida.

Em nossa época liquido moderna, o mundo a nossa volta está repartido em fragmentos mal coordenados, enquanto as nossas existências individuais são fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados. Poucos de nós, se é que alguém, são capazes de evitar a passagem por mais de uma “comunidade de ideias e princípios”, sejam genuínas ou supostas, bem integradas ou efêmeras, de modo que maioria tem problemas em resolver a questão da La mêmete (a consciência e continuidade de nossa identidade com o passar do tempo)[4].
Naquele contexto era possível falar em uma sociedade de conhecimento mútuo, ou seja, no seio de uma comunidade ou de uma rede familiar o lugar de cada pessoa era evidente e, portanto impassível de ser questionado. No mundo liquido moderno por outro lado, buscamos, construímos e mantemos as referencias de nossas identidades em movimento, ou seja, em uma luta constante para nos juntarmos aos grupos que também estão em movimentos. As respostas às perguntas sobre a essência da vida, sobre quem somos concretiza-se ou não neste movimento.

A ausência de sentido, o vazio, a solidão tem caracterizado este mundo diante de questões como a vida, o seu sentido, a morte. Distante de tradições milenares ou de leis morais, que eram marcadamente expressão da solidez da sociedade passada o mundo que nos rodeia não nos ensina a vivenciar um processo de autoconhecimento, tampouco de compreender a vida ou a morte. Em uma das conferencias realizadas por Maurice Zundel ele expressa: “O que fazemos da nossa vida? Estamos à procura de nós mesmos, fugimos de nós, reencontramo-nos de forma intermitente e nunca chegamos a fechar o circulo, a definir-nos a nós próprios, a saber quem somos… não temos tempo, a vida passa tão depressa, estamos absorvidos pelas preocupações materiais ou por diversões…”[5]

A busca pelo conhecimento de si mesmo, da identidade não parece ter sido a tarefa e a preocupação de nossos contemporâneos. Entretanto, autores como Jean Yves Leloup e Marie de Hennezel tem suscitado o convite a este movimento. Desse modo, estes autores apontam a reflexão acerca da espiritualidade como elemento importante neste processo de compreensão de temas acerca da vida, da existência e da morte. A espiritualidade, segundo a perspectiva destes autores é entendida como “algo que faz parte de todo o ser que se questiona diante do simples fato de sua existência. Diz respeito à sua relação com os valores que o transcendem, seja qual for o nome que lhe atribua”[6].

Conhecer-se é um processo que começa na infância e se prolonga por toda a vida. Tal processo é vivenciado por cada pessoa de maneira única, assim, o autoconhecimento e a procura de si mesmo são diferentes para cada um e cada uma. Alguns autores mostram que este processo de desenvolvimento apresentam fases que poderíamos denominar como fases ou etapas comuns. Entretanto, a forma como cada pessoa em sua singularidade vai construir, fazer, refazer é única e intransferível.

É possível afirmar que o processo de tornar-se pessoa, de conhecer-se é ao mesmo tempo uma experiência simples e profunda na vida do ser humano. Neste processo, o convite é que o ser humano possa ser sempre mais e por isso a necessidade central da vida se encontra na realização das potencialidades. Assim sendo, quanto se explora as potencialidades das quais cada um é capaz mais se sente a profunda alegria de ser quem se é. A pergunta constante: “Quem sou eu?” caminha ao lado do que significa viver, do que significa compreender o sentido da vida.

A espiritualidade neste processo tem um papel importante, pois ela pode ser “aquele passo a mais” que pode ser dado no processo de autoconhecimento. Segundo Hennezel e Leloup, “dar um passo a mais na aceitação da minha fadiga, na aceitação de meus limites, limites de minha inteligência, de minha incompreensão, diante do sofrimento”, isto significa a busca constante do entendimento de quem somos. No mundo em que vivemos diante do vazio, da solidão, do não pertencimento a uma comunidade especifica; a busca constante em dar este passo a mais, a busca em se conhecer aprofundando o sentido da vida significa a possibilidade de uma vida mais integrada ainda que em um mundo líquido moderno.
Referências bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005
HENNEZEL, Marie de; LELOUP, Jean-Yves. A arte de morrer: Tradições religiosas e espiritualidade humanista diante da morte na atualidade. Tradução de Guilherme de Freitas Teixeira. Petrópolis, Vozes, 2012.
MAY, Rollo. O homem a procura de si mesmo.Petrópolis, Vozes, 2012.



[1]MAY, Rollo. O homem a procura de si mesmo. Petrópolis, Vozes, 2012, p. 14.
[2]MAY, 2012, p. 22.
[3] MAY, 2012, p. 24.
[4] BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 19.
[5]HENNEZEL, Marie de; LELOUP, Jean-Yves. A arte de morrer: Tradições religiosas e espiritualidade humanista diante da morte na atualidade. Tradução de Guilherme de Freitas Teixeira. Petrópolis, Vozes, 2012, p. 17.
[6]HENNEZEL, Marie de; LELOUP, Jean-Yves, 2012, p. 18. 

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As publicações deste blog trazem conteúdos institucionais do Projeto Força Feminina – Unidade da Rede Oblata Brasil, bem como reflexões autorais e também compartilhadas de terceiros sobre o tema prostituição, vulnerabilidade social, direitos humanos, saúde da mulher, gênero e raça, dentre outros assuntos relacionados. E, ainda que o Instituto das Irmãs Oblatas no Brasil não se identifique necessariamente com as opiniões e posicionamentos dos conteúdos de terceiros, valorizamos uma reflexão abrangente a partir de diferentes pontos de vista. A Instituição busca compreender a prostituição a partir de diferentes áreas do conhecimento, trazendo à tona temas como o estigma e a violência contra as mulheres no âmbito prostitucional. Inspiradas pela Espiritualidade Cristã Libertadora, nos sentimos chamadas a habitar lugares e realidades emergentes de prostituição e tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, onde se faz necessária a presença Oblata; e isso nos desafia a deslocar-nos em direção às fronteiras geográficas, existenciais e virtuais.   

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