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“As mulheres ainda são as mais vulneráveis à sífilis”

Carla Bittencourt
A sífilis já deveria estar eliminada no Brasil, mas, em vez disso, o país enfrenta uma epidemia provocada pela bactéria Treponema pallidum. Além de ser transmitida sexualmente, a sífilis também pode ser passada da mãe para o bebê durante a gravidez, e são esses dois casos – gestantes e recém-nascidos – os que mais têm aumentado na Bahia. Em Salvador, o número de bebês nascidos com a doença dobrou nos últimos dois anos e, entre 2010 e 2013, vinte vezes mais crianças morreram em decorrência da sífilis congênita. Para Ana Gabriela Travassos, presidente da regional baiana da Sociedade Brasileira de Doenças Sexualmente Transmissíveis, há múltiplas causas que explicam esse quadro e que passam pelo aumento do diagnóstico, pela falta de penicilina no mercado e pelo descaso quanto ao uso de preservativo. A médica, que defende em dezembro sua tese de doutorado sobre o tema, encontrou, em Salvador, uma população com HIV com uma prevalência de 31% de sífilis, estatística alta mesmo se comparada ao resto do país. À Muito, Travassos lembra que o diagnóstico é simples, feito a partir de um exame gratuito disponível nos postos de saúde. Como a sífilis costuma ser assintomática, a médica indica que todos os que tem ou tiveram relações sexuais desprotegidas façam o teste. Nesta entrevista, ela explica, entre outras coisas, por que mulheres ainda são as mais vulneráveis. 
O Ministério da Saúde anunciou que há uma epidemia de sífilis no Brasil. Nos últimos cinco anos, foram 230 mil novos casos, um aumento de 32% somente entre 2014 e 2015.  Por que isso aconteceu?
Há alguns fatores. Primeiro, ampliou-se o diagnóstico. Hoje, você tem o teste rápido para sífilis na unidade básica de saúde. Basta uma picada no dedo, uma gotinha de sangue e o resultado sai em 30 minutos. Esse é um ponto positivo, porque é melhor saber e tratar. Aí vem o segundo ponto, um dos mais negativos, que foi o desabastecimento, no país, da matéria-prima para a penicilina benzatina, droga que se usa para tratar a sífilis. O Ministério da Saúde importou essa penicilina, já está disponível, mas por um bom tempo não esteve, e isso fez com que mais pessoas se infectassem. O terceiro ponto que eu destacaria é a prevenção. Nós tivemos, nos últimos dez anos, uma redução do uso do preservativo, o que aumentou, e muito, a transmissão.
Podemos afirmar que as pessoas estão relativizando o uso da camisinha?
Sim. É uma questão de autocuidado, mas, hoje, a geração é da velocidade, dos amores fluidos. É maior o número de parceiros e menor o cuidado, apesar de o acesso à informação ser muito grande. A internet tem bastante material disponível, tem as propagandas, as campanhas. Mas a linguagem ainda não é apropriada, não chegou para o jovem. 
Talvez faltem campanhas mais agressivas, já que os jovens não viram, como as gerações anteriores, pessoas morrendo por causa da Aids, por exemplo.
A gente associou muito o uso da camisinha ao HIV. Mas, hoje, o que tem crescido são as infecções bacterianas – sífilis, gonorreia, clamídia. E isso é no mundo, não só no Brasil, e principalmente na população mais jovem. Então, quando a gente fala do uso do preservativo, é focando no autocuidado. Ninguém quer ser moralista, pregar a cultura da abstinência, nada disso. Quando a campanha fala de doença, foca numa realidade distante, porque a maioria das pessoas não vê a doença no parceiro. Essas infecções são pouco sintomáticas. Então, se a pessoa está bem fisicamente, não se imagina que ela tem uma infecção. 

Em Salvador, dobrou o número de recém-nascidos contaminados pela sífilis. O índice, que em 2013 era de 9,03 casos para cada mil nascidos vivos, passou em 2015 para 18,8 casos

Ana Gabriela Travassos, presidente da regional baiana da Sociedade Brasileira de Doenças Sexualmente Transmissíveis

Qual a situação da Bahia no contexto de epidemia da sífilis?
A Bahia também tem tido um crescimento do número de casos. Segundo a Secretaria da Saúde do Estado, este ano, 2.961 pessoas foram diagnosticadas com a doença. Mais do que o registrado em 2013, por exemplo, que teve 2.677 novos casos. Aqui, o mais grave está no aumento de casos em gestantes e em bebês.  Em Salvador, nos últimos dois anos, dobrou o número de recém-nascidos contaminados pela sífilis. O índice, que em 2013 era de 9,03 casos para cada mil nascidos vivos, passou em 2015 para 18,8 casos para cada mil nascidos vivos. Como esses casos são de notificação obrigatória, eles são mais consistentes. E há uma mortalidade grande de bebês, um aumento de 20 vezes no estado, entre 2010 e 2013. Isso é gravíssimo. 
A microcefalia é uma das consequências pouco lembradas da sífilis, e o problema na Bahia está, principalmente, concentrado em gestantes e bebês. Há uma razão específica para isso?
Além das que explicam a sífilis de uma forma geral, há outro aspecto importante a ser considerado: o pré-natal não tem sido feito de forma precoce como deveria. A mãe precisa tratar a infecção até o sexto mês de gestação. A partir de 28 semanas, a chance de ela transmitir a bactéria para o bebê aumenta e já é considerado caso de sífilis congênita se o tratamento não acontecer até um mês antes do parto. Por isso, o pré-natal precoce é ideal. 
A microcefalia decorrente da zika é a mesma provocada pela sífilis?
A fisiopatologia é semelhante, mas a causa é diferente. Uma é infecção viral e a outra, bacteriana. Microcefalia é sempre microcefalia e as consequências são graves. Mas, apesar de a estatística de sífilis na gravidez ter aumentado, não são todas as grávidas que terão bebês com microcefalia. A incidência bem menor do que em decorrência da zika.
Que cuidados devem ter os pais dos bebês que sobrevivem à sífilis congênita?
As crianças que têm sífilis e não têm lesões graves vão viver a vida normalmente. É diferente da zika, que, quando acarreta microcefalia, traz um comprometimento para o resto da vida. Existem casos de sífilis congênita nos quais o bebê tem poucos sintomas, usa a penicilina por dez ou 15 dias e vai ter a vida normal. 
A incidência de casos de sífilis, que em 2010 era maior entre homens, hoje recai sobre as mulheres. Por que a vulnerabilidade neste grupo está aumentando?
As mulheres ainda são as mais vulneráveis a DSTs de uma forma geral. Elas têm dificuldade de negociar o preservativo com o parceiro, por exemplo. Mas o acesso da mulher ao diagnóstico também é maior, por isso é mais fácil contabilizar essa população. Quando é que um homem faz exame para a sífilis? Somente quando tem sintoma, quando tem uma úlcera ou outra doença, então vai investigar essa. Mas a mulher vai fazer o pré-natal e, automaticamente, faz o teste para a sífilis.
A sífilis é uma doença silenciosa, não apresenta sintomas graves em seu estágio inicial. Como as pessoas podem saber se estão ou não infectadas?
Elas têm que fazer o exame de rotina. Assim como hoje já fazem o hemograma ou avaliam a pressão arterial, quem tem ou teve vida sexual precisa fazer o exame da sífilis. Hoje, só para você ter uma ideia, o Conselho Regional de Medicina e o Ministério da Saúde recomendam a investigação de rotina para sífilis e também para HIV e hepatites virais, sem que haja sintomatologia alguma. Também não há necessidade de esperar o pedido médico. Quem tiver uma relação sexual desprotegida pode ir ao posto de saúde e pedir para fazer o exame, gratuitamente.

Quem tiver uma relação sexual desprotegida pode ir ao posto de saúde e pedir para fazer o exame, gratuitamente

Ana Gabriela Travassos, presidente da regional baiana da Sociedade Brasileira de Doenças Sexualmente Transmissíveis

Na terceira fase da doença, considerada a mais grave, a bactéria permanece no organismo sem manifestar sintomas, e isso pode causar meningite ou graves problemas cardiovasculares. Muitas pessoas chegam até esse estágio?
Sim, e isso tem acontecido com uma frequência ainda maior. É o que a gente chama de neurossífilis, porque infecta o cérebro. Os problemas que acometem o coração também têm aumentado. Isso acontece porque a doença fica latente e não é tratada. Em pacientes com HIV, a sífilis é ainda mais agressiva, pois  eles não têm uma resposta imunológica adequada ao tratamento.
Em sua tese de doutorado, a senhora pesquisou pacientes com HIV que também têm sífilis. Que dados encontrou?
Encontramos, em Salvador, uma população com HIV com uma prevalência de 31% de sífilis, que é considerada muito elevada. Outros trabalhos feitos no Brasil encontraram uma taxa de 0,5% na população em geral. E, mesmo na população mundial com HIV, num trabalho de 2015, a taxa foi de 9,5%.
Por que esse dado encontrado tão mais alto em Salvador?
O Brasil está reestudando a sífilis. No mundo, há um recrudescimento da infecção, ela está voltando como uma epidemia. Meu foco de estudo foi Salvador, e, provavelmente, essa estatística até já aumentou. A preocupação da sífilis no paciente com HIV é que ela traz quadros bem mais graves da doença e também provoca uma transmissão maior do próprio HIV. Essa é uma população que precisa de um cuidado maior, ser melhor investigada e tratada precocemente. De forma geral, a doença está mais agressiva atualmente. Há cinco relatos recentes, nos Estados Unidos, de cegueira causada pela sífilis. Cegueira irreversível, casos em que o Treponema destruiu a retina. 
Voltando ao tema do desabastecimento de penicilina, essa é uma substância relativamente barata, que não dá lucro para a indústria farmacêutica. Há quem diga que esse “sumiço” é uma estratégia da própria indústria para elevar o preço de mercado. O que a senhora acha?
Acho que não é só isso. A epidemia cresceu no mundo todo, então todo mundo quis comprar. E não foi só a falta de medicamento a causa da epidemia, mas a falta do uso de preservativo. A indústria pode ter agido propositalmente? Não excluo essa hipótese. Mas não é só isso. 
O Brasil não sintetiza, mas importa a penicilina. Já que é tão barato, como o governo pode se posicionar para que uma questão de saúde pública não seja subjugada a um viés comercial?
O governo já está tentando fazer isso. Pela última colocação que eu vi do Ministério da Saúde, já se está estudando partir para esse caminho. 

De forma geral, a doença está mais agressiva atualmente. Há cinco relatos recentes, nos Estados Unidos, de cegueira causada pela sífilis

Ana Gabriela Travassos, presidente da regional baiana da Sociedade Brasileira de Doenças Sexualmente Transmissíveis

O que podemos deixar como orientação médica para a população no que diz respeito a essa atual epidemia de sífilis?
A mensagem principal é o uso do preservativo. E não adianta pensar “ah, um dia eu vou usar”. Não. É para usar sempre, cotidianamente. Depois,  façam o teste, tanto para a sífilis quanto para o HIV, porque hoje existe tratamento, e, eu repito, é sempre muito melhor saber e tratar do que não saber e adoecer gravemente, seja de sífilis, de HIV ou das hepatites virais. A pessoa vai se tratar e vai ficar bem. Em terceiro lugar, caso tenha sífilis, é só procurar o tratamento adequado e não ficar adiando. Basta tomar a penicilina benzatina e pronto. Não existe relato de resistência do Treponema à penicilina. É algo que já poderia, inclusive, estar eliminado. Cuba e Tailândia, por exemplo, já conseguiram eliminar a sífilis congênita, enquanto o Brasil regride e vive uma epidemia. Isso é assustador. Algumas pessoas pensam “não estou tendo relação, não preciso fazer exame”.  Não tem nada a ver. A sífilis fica latente por mais de dez anos. A transmissibilidade diminui na latência, mas ela ainda acontece. A pessoa não está sentindo nada e pode transmitir. É preciso que a busca pelo diagnóstico aconteça mesmo sem sintomas. E também que seja feito um pré-natal precoce, que inclua o parceiro, para que ele também faça o exame e, se for o caso, os dois se tratem juntos. É muito comum a mulher se tratar e voltar a ficar doente simplesmente porque o parceiro não se cuidou também.  Façam isso pelo bem-estar de vocês, do bebê e de todos. 

Conteúdos do blog

As publicações deste blog trazem conteúdos institucionais do Projeto Força Feminina – Unidade da Rede Oblata Brasil, bem como reflexões autorais e também compartilhadas de terceiros sobre o tema prostituição, vulnerabilidade social, direitos humanos, saúde da mulher, gênero e raça, dentre outros assuntos relacionados. E, ainda que o Instituto das Irmãs Oblatas no Brasil não se identifique necessariamente com as opiniões e posicionamentos dos conteúdos de terceiros, valorizamos uma reflexão abrangente a partir de diferentes pontos de vista. A Instituição busca compreender a prostituição a partir de diferentes áreas do conhecimento, trazendo à tona temas como o estigma e a violência contra as mulheres no âmbito prostitucional. Inspiradas pela Espiritualidade Cristã Libertadora, nos sentimos chamadas a habitar lugares e realidades emergentes de prostituição e tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, onde se faz necessária a presença Oblata; e isso nos desafia a deslocar-nos em direção às fronteiras geográficas, existenciais e virtuais.   

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