A cada 56 minutos, uma mulher é vítima de violência em Salvador
Caso BBB chama atenção para violência vivida por mulheres
‘Mimimi de feminista’. ‘Sociedade que só reclama’. ‘O que fez ele surtar foi o aperto de mente dela’. ‘Foi ela que causou tudo isso’. ‘Ela gosta!’. Até aqui, você leu reações – comentários nas redes do CORREIO – à notícia de que Marcos Harter foi expulso do Big Brother Brasil (BBB) anteontem. A polícia foi à casa e, depois de ver as imagens da briga entre ele a namorada no reality, Emilly, abriu um inquérito. Marcos pode até ter saído, mas continua na casa.
Ele está na casa da sua prima. Da vizinha que mora no andar de baixo. Na casa daquela moça que sempre te dá ‘bom dia’ quando passa por você no trabalho. E na de 2.538 mulheres que já denunciaram casos de violência doméstica este ano, só em Salvador. Aqui, uma mulher é agredida a cada 56 minutos.
Claro que ‘os Marcos’ são outros. Atendem por nomes igualmente comuns – João, Felipe, Lucas, Alexandre, Isaque, Antônio. São pessoas que todo mundo conhece. E que, nem sempre, vão receber a culpa que lhes é de direito. Pelo contrário: assim como Emilly, no BBB, muitas vezes, nem mesmo a vítima consegue enxergar o mal causado.
Muitas vezes, elas acham, inclusive, que é o contrário: a mulher – mesmo elas – tem culpa. Só que o maior problema mora aí: a culpa nunca é delas. O ambiente da recepção da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), em Brotas, ajuda a entender um pouco do quanto a situação é grave. Na manhã de ontem, quando o CORREIO esteve na unidade, sete vítimas aguardavam atendimento. Algumas conversavam entre si, outras sequer pareciam estar ali.
‘Ele gosta muito dela’
Foi quando, na TV, um jornal começou a repercutir a expulsão de Marcos do BBB. Quando ouviram a palavra ‘agressão’, as atenções de todas as mulheres se voltaram à TV. A punição do BBB, entretanto, soou como um exagero para as três únicas que se manifestaram. “Meu Deus, mas ele gosta muito dela. Ela é chata demais. Deu até pena da bichinha agora, chorando assim porque ele saiu”, comentou uma.
Outra concordou. “Também fiquei com pena dela, mas fazer o quê se ela ficou pirraçando o cara. Eu acho eles dois um casal bonito”, acrescentou a segunda. A terceira e última a comentar o assunto afirmou que Marcos nada tinha feito à companheira de casa. “Não vi nada demais. Eu, hein. Quem ia ganhar era ele, acho que a Globo fez de propósito. Esse programa é armado”, completou.
Outras duas mulheres não expressaram reações. A essa altura, a sexta mulher brincava em um canto da sala com uma criança que, pelos traços físicos, parecia ser sua filha. A sétima mulher sequer abria os olhos. Só chorava.
Já na sala da assistência social, a repórter e uma das profissionais foram surpreendidas por uma vítima em prantos. Era a sétima mulher. Ela entrou correndo, como quem foge do perigo. Sentou na cadeira, debruçou os braços cruzados na mesa e pôs a cabeça sobre eles. Estava em prantos e tremia. A assistente social tentava acalmá-la, dizendo para que ela não tivesse medo. Ali, estava segura.
“Ele vai me matar. Ele ligou agora e disse que vai matar meu filho e eu”, explicou à assistente social, que pedia que ela respirasse e tentasse manter a calma. “Ele ligou para mim agora e disse que vai pegar o meu filho na escola. Ele vai pegar meu filho na escola a qualquer hora e fazer alguma coisa com ele. Meu Deus do céu”, diz a mulher, chorando.
Para a assistente social, as lágrimas evidenciavam não só o medo de ter sofrido uma ameaça, mas, especialmente, a tristeza de ter recebido uma promessa de morte de alguém com quem dividiu, ao menos até aquele momento, a vida.
Violência psicológica
É difícil identificar quando as agressões começam ou quando o relacionamento se torna abusivo. No entanto, a professora do curso de Psicologia da Unifacs Sandra Rolemberg, especialista em terapia familiar e terapia de casal, aponta alguns sinais. “Um ponto importante é quando essa mulher se percebe sem ter a condição de ter sua opinião, de sentir, agir, de ter o direito de escolher como se vestir sem que isso a coloque num lugar sem se sentir culpada”.
Além disso, ter medo de terminar a relação e ouvir frases como ‘você não vai conseguir mais ninguém’ também indicam abuso psicológico. “São fases que colocam ela num lugar onde ela não pode sair disso, ela se sente dependente dessa relação”, afirma a professora.
Há, ainda, fatores culturais que influenciam a permanência da mulher em uma relação assim. E isso vai desde o conhecido machismo até a cultura latina. “A vítima também tem medo do julgamento, de como vai ser vista e do quanto pode se expor ao falar de temas que causam tanta dor”.
O que acontece é que, segundo a delegada Vânia Matos, titular da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) de Periperi, a violência psicológica pode ser ainda mais devastadora do que a violência física. “Tenho atendido muitas pessoas que chegam a um estado de depressão. Quem está vivendo o problema, às vezes, não sente que está vivendo. Começam as pressões, algumas acham que é ciúme e que até é bonito, porque ainda tem esse conceito muito machista em nossa cultura. É tão comum que fica difícil entender que aquilo é violência”.
Muitas das mulheres que denunciam pela primeira vez não foi agredida somente uma vez, segundo a delegada. “A grande maioria nunca registrou antes, mas relata que foi agredida fisicamente. Elas nunca procuraram porque muitas são ameaçadas. Eles dizem que, se elas procurarem a polícia, vão ‘fazer e acontecer”.
Mete a colher
A major Denice Santiago é uma das pessoas designadas a proteger essas mulheres. Comandante da Ronda Maria da Penha da Polícia Militar, ela e outros 60 policiais acompanham diariamente cerca de 640 mulheres no estado – além de Salvador, há três equipes estratégicas em Feira de Santana, Juazeiro e Paulo Afonso. Divididos em seis equipes, os PMs fazem visitas diárias ‘surpresa’ às mulheres atendidas, que são aquelas que estão sob medida protetiva concedida pela Justiça.
“Costumamos repreender e discriminar a violência física. No caso do BBB, ele já estava o tempo inteiro praticando violência contra ela, mas quando houve a violência física foi que começou a inquietação popular. A gente tem que começar a prestar atenção nas violências mínimas que acontecem no cotidiano”, diz a major.
E, como ela aponta, não é somente a mulher que pode denunciar a situação de violência que está vivendo. Qualquer pessoa, seja amigo, parente ou vizinho, pode fazer isso tanto pelo telefone 180 quanto em uma delegacia. “É difícil alguém fazer isso, infelizmente, mas, às vezes, a mulher precisa desse apoio, porque, sozinha, ela não consegue”.
Meter a colher é importante, mas é preciso tomar cuidado, como aponta a professora de Psicologia Sandra Rolemberg. Nessas horas, é preciso escutar as vítimas – e não subjugá-las. “É importante escutar o que ela está pedindo e como ela gostaria que fosse feito, trazendo propostas para pensar junto. Tomar à frente, às vezes, mesmo com a boa intenção pode reproduzir uma atitude violenta”.
Elas precisam entender que não são as culpadas – nem nunca serão. Aqui, os culpados são eles. São eles quem devem ser expulsos da casa – seja a do BBB, seja a delas.
FONTE: Correio da Bahia