Relacionamento abusivo

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‘Da boca ao ânus, estava tudo destruído’, diz mulher que adoeceu após um relacionamento abusivo

Casada por 15 anos, a educadora Tulipa, 42 anos, se viu com um diagnóstico de gastrite, esofagite, pedras nas vesícula e hemorroidas, além de depressão profunda e ansiedade generalizada.

A educadora Tulipa, 42 anos, tinha tudo para ser considerada alguém realizada na vida. Bem-sucedida profissionalmente, chegou a dar aula em três universidades ao mesmo tempo. Casada por 15 anos, é mãe de três filhos. Tinha uma vida confortável no interior do estado até que percebeu uma coisa que a aterrorizou: estava vivendo um relacionamento abusivo.
Mais do que isso: estava ficando doente por ele. Gastrite, esofagite, pedras nas vesícula e hemorroidas se juntaram ao diagnóstico de uma depressão profunda e de uma ansiedade generalizada. “Minha vontade, na época, era de ter um câncer maligno e morrer”, conta, em depoimento ao CORREIO.
Aqui, a pedido dela, omitimos quaisquer informações que possam identificá-la, a exemplo da cidade onde viveu e dos locais onde trabalhou. Também a pedido, decidimos batizá-la com o nome fictício de uma flor: a tulipa. São aquelas as flores que também podem significar um amor verdadeiro e dedicado, também podem simbolizar um amor sem esperança. Ao mesmo tempo, tulipas – que renascem na primavera – também podem ser símbolo de um recomeço. Confira aqui o depoimento dela: 
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“Cheguei ao Loreta (Valadares, centro de referência municipal que acolhe mulheres vítimas de violência doméstica) apavorada. A gente fica sempre com medo ou receio e um dia soube que ia ter uma audiência na Vara (da Mulher, que fica na mesma rua, nos Barris). Eu estava muito nervosa e a assistente social me atendeu. Isso era março de 2017. Mas meu caso é atípico. Geralmente surpreende as pessoas.
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Fui casada durante quase 15 anos e estava morando em outra cidade do interior do estado. Comecei a sofrer uma série de violências psicológicas. Nunca houve violência física, mas, no último ano (de casamento), em 2014, eu me via refém. Ele dizia que eu não fazia nada certo. E dizia tanto que eu acabei me convencendo que não havia nada de positivo em mim. Eu me via querendo morrer para deixar uma pensão para ele cuidar de meus filhos.
Chegou uma época que eu dava aula em três universidades ao mesmo tempo e tinha muito sucesso profissional, que ele não alcançava. Hoje, com a terapia, eu entendo que ele não suportava isso e não sabia como manter um relacionamento que fosse bom para ele e para mim. Deixei de fazer o doutorado logo após o mestrado porque ele não tinha nem mesmo terminado a graduação. Uma pessoa ainda disse para mim: ‘ele não vai aguentar’.
Um dia, ele disse exatamente isso para mim: ‘você só serve para ganhar dinheiro’. Até que, em setembro de 2014, eu sonhei com alguém falando para mim: ‘por que você ouve tudo isso dele? Vá embora’. Minha filha, que tinha 14 anos na época, já tinha dito isso; que era para eu ir embora. E comecei a pensar em procurar uma saída.
Em outubro, viemos para Salvador para votar para presidente. Não tinha transferido o voto ainda. Viemos e fomos na casa de um amigo nosso, mas ele não quis saber de mim. Não me tocava. Eu abraçava, ele me empurrava. Na casa da irmã dele, ele fez uma grosseria. Quando voltamos, comecei a morar na sala de TV. Decidi comprar a passagem para Salvador. Minha vontade, na época, era de ter um câncer maligno e morrer.
Contei à minha mãe e ela, que tem uma casa em cima da dela, arrumou um pedreiro, limpou, pintou para mim. Fiquei de mudar no dia 26 de dezembro daquele ano. Antes disso, viajei com meus alunos para o Recôncavo e levei meus três filhos (a adolescente, mais velha, era a única de um relacionamento anterior, mas tinha sido criada por ele). Quando cheguei em casa, ele continuou dizendo que a culpa do casamento ter acabado era minha. Disse que ‘não me queria mais, não sentia mais desejo, mas era para eu ficar lá, que depois (o amor) voltava’.
Quando ele saiu para trabalhar, liguei para o cara da mudança e agendei para aquela mesma semana. Me mudei sem fogão, sem geladeira.
Fiquei num estado letárgico. O momento de adaptação foi muito complicado e ele continuava fazendo as mesmas coisas. Dizia que a culpa era minha, por ter ido embora. Em janeiro de 2015, decidi que não ficaria mais com ele.
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Mas foi aí que ele começou uma perseguição sistemática da minha vida. Das minhas redes sociais, dos meninos. Tudo isso enquanto eu comecei a fazer coisas que não fazia, como ir a shows. Ele via fotos minhas e mandava textos e textos. Eu lia, respondia. Comecei a saber que amigos meus também tinham se afastado de mim por ele. E eu comecei a achar que as pessoas estavam passando informações minhas para ele, porque ele sabia de tudo que eu fazia.
No dia 8 de março de 2015, eu estava conversando com um amigo meu, que é artista plástico e ele me deu ‘parabéns’ pelo Dia da Mulher. Eu brinquei e disse que queria flores e bombons. Então, ele desenhou para mim e eu postei no Facebook. Uma amiga minha depois veio me perguntar se eu tinha recebido presentes e contei que não, mas que um amigo tinha mandado o desenho. Brinquei que ‘não era namorado, mas era bonitinho’. Depois, ele (o ex-marido) veio falar a mesma coisa comigo que falei com ela. As mesmas palavras.
Confrontei minha amiga, mas ela disse que não tinha falado com ele. Só que ele sabia de tudo da minha vida. Em julho de 2015, eu arrumei um namorado. Ele começou a infernizar a vida de minha filha também. Meu filho teve que passar um dia excluindo mais de 100 pessoas ligadas a ele de meu Facebook. Bloqueei ele.
Até que ele invadiu minha casa.
Veio aqui e eu disse: ‘não suba’. Mesmo assim, ele entrou na casa e disse que estava se preparando para me pegar na Justiça há quatro anos. Eu fiquei tão preocupada que fui na polícia. Enquanto isso, fui vivendo minha vida.
No fim do ano, tive outro namorado. Fomos viajar num feriado, enquanto meus dois filhos menores estavam na cidade dele. Ele me ligava minuto a minuto. O tempo inteiro me cercando.
Depois eu me peguei no fim de ano trabalhando muito, com muita hora extra. No meu aniversário, depois que as pessoas foram embora, eu dormi e não acordei. Só acordei dois dias depois. Soube por minha filha que eu tive febre muito alta e que estava levantando só para ir ao banheiro e eles me dando comida na cama.
Minha médica recomendou um check-up total e acompanhamento com psicólogo. Nos meus exames, não deu nada. Exceto pelo fato de que meu aparelho digestivo estava totalmente destruído. De afta a gastrite, esofagite, pedra na vesícula, hemorroidas. Da boca ao ânus, estava tudo destruído.
Comecei também a terapia, que já faço há um ano e meio. E ele começou a mandar mais e-mails dizendo que tinha mais coisas sobre mim. Antes disso, ele mandou um divórcio impossível de assinar. Queria que eu assinasse um inventário de R$ 110 mil para pagar. Até o apartamento de meu primeiro ex, ele quer. Meu ex (pai da filha) teve um linfoma e morreu. O apartamento ficou no meu nome, mas os três filhos e a viúva moram lá. Mesmo assim, até isso ele quer.
Em 2015, fui diagnosticada com depressão e uso medicamentos contínuos para dormir e para o humor. Sei que é do agravo dessa situação. Comecei a sentir os sintomas físicos.  Trocava nomes, esquecia coisas, não tinha concentração.
Nesse mesmo dia que fui à psiquiatra, ele me ligou dizendo que um amigo dele viu meu perfil no Tinder (aplicativo) e mandou fotos. Ele saiu dizendo que eu estava com fama de ‘mulher fácil’. Era uma espécie de chantagem. E eu era refém dele por conta das crianças. Ele dizia que, se eu não atendesse às ligações dele, seria alienação parental. Me ameaçava, dizia que meu atestado de depressão era falso.
Em novembro do ano passado, um irmão mais novo dele veio morar comigo. Eu me sentia meio mãe do menino porque ajudei a criar. Foi ele que me contou o que estava acontecendo. Quando ele vinha falar comigo, meu filho veio me dizer que o pai tinha mostrado um monte de coisa minha no computador. Um monte de arquivo.
O irmão dele contou que não era só isso. ‘Ele tem tudo seu no computador’, disse. Descobrimos que ele estava pagando um hacker para invadir meu computador. Minha filha mais velha ficou revoltadíssima, porque ele dizia que não tinha dinheiro para pagar pensão, mas tinha para pagar um hacker.
Contratei um menino de TI (Tecnologia da Informação) que, de fato, constatou que tinha um vírus espião no computador. A sensação que eu tinha é que eu estava vivendo dentro de uma maquete com meus amigos e família, enquanto ele sabia de tudo o tempo inteiro. E ele continuava cometendo uma coisa que depois vim descobrir que se chama gaslighting, que é quando um homem faz com que a mulher ache que está louca.
Peguei o print da conversa com o irmão dele e levei na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam). Só então abriram inquérito ainda da primeira queixa.
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Me senti muito só enquanto estava sendo atendida só pela Deam. Primeiro, porque eles colocam homens. Segundo, o policial fez chacota (da história). Quando contei à defensora pública, ela ficou horrorizada.
Graças a Deus, está nas mãos da Justiça agora. Antes de chegar lá, eu estava vulnerável. Não me sentia protegida pela Deam. Me sentia amedrontada. Mas comecei a perceber que o errado era ele. Tive que mudar o email que usava há 20 anos e abrir outro, porque ele estava lendo.
A juíza achou tão absurdo o meu relato que deu medida protetiva não apenas para mim, mas para minha família toda, inclusive minha filha mais velha. Só quem não tem medida protetiva são os dois menores, que são filhos dele também.
Comecei a ter crises de novo. No (último) dia 31 de maio, fui a um psiquiatra porque comecei a ter dor de cabeça o tempo inteiro. Aí me explicaram que, além da insônia causada pela ansiedade, há a insônia da depressão. Meu Cid (Código Internacional de Doenças) aumentou. Hoje, tenho dois: depressão profunda e ansiedade generalizada, por essa violência. Minha mãe sequer aceita minha depressão. Dizia que era menopausa, qualquer coisa… Menos depressão.
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Isso tudo tem me ajudado a descobrir interesses, trabalhos, participar de eventos, conhecer muita gente. Descobri que posso ajudar outras mulheres que estão nessa mesma situação. Muitas de minhas amigas estão com relatos parecidos, comprometendo a autoestima. São mulheres de 30, 40 anos que se submetem a um teleguiamento de um homem a troco da instituição ‘casamento’, que, a meu ver, não deveria aprisionar.
A maioria vai para a igreja e os religiosos, infelizmente, tendem a fazer com que elas se conformem com o destino, como se elas não pudessem sair. Minha filosofia hoje, o budismo, diz que o que a gente faz é construção nossa. Eu não tenho rancor do meu ex-marido. Tenho pena dele. Mas sei que ele é perigoso.
Espero que a Justiça determine que ele tenha acompanhamento psiquiátrico, mas prefiro me manter à distância.
Na verdade, existe um padrão na sociedade dessa geração que hoje está com 40, 50 anos, que faz com que os homens se comportem desse modo e a gente, mulher, permite, porque fomos ensinadas a aceitar.
Tenho o exemplo de minha mãe, de ter sido mais submissa ainda e ter ficado com meu pai até o fim. O exemplo dela serviu para que eu não me tornasse igual a ela. E minha filha não vai se tornar igual a mim, porque o meu sofrimento a fez muito mais forte. Ela hoje já demonstra sinais de que entende qual é o papel dela no mundo, que não é precisar de um homem para ser feliz, para viver”.
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Ao CORREIO, a delegada titular da Deam de Periperi (onde Tulipa registrou a queixa), Vânia Matos, reconheceu que há dificuldade no atendimento das vítimas de violência psicológica. “A Lei Maria da Penha fala de violência psicológica, mas ela não tem pena. Para eu penalizar e fazer o inquérito, preciso do Código Penal e, às vezes, não existe a ameaça, o xingamento. Existe a pressão psicológica e eles (os investigadores) têm dificuldade porque não são da área jurídica”.
Segundo ela, a orientação é que eles indiquem que essas vítimas sejam atendidas pelas delegadas. Se não houver nenhuma no momento, que elas voltem em outro momento. 

Fonte: Correio da Bahia

Conteúdos do blog

As publicações deste blog trazem conteúdos institucionais do Projeto Força Feminina – Unidade da Rede Oblata Brasil, bem como reflexões autorais e também compartilhadas de terceiros sobre o tema prostituição, vulnerabilidade social, direitos humanos, saúde da mulher, gênero e raça, dentre outros assuntos relacionados. E, ainda que o Instituto das Irmãs Oblatas no Brasil não se identifique necessariamente com as opiniões e posicionamentos dos conteúdos de terceiros, valorizamos uma reflexão abrangente a partir de diferentes pontos de vista. A Instituição busca compreender a prostituição a partir de diferentes áreas do conhecimento, trazendo à tona temas como o estigma e a violência contra as mulheres no âmbito prostitucional. Inspiradas pela Espiritualidade Cristã Libertadora, nos sentimos chamadas a habitar lugares e realidades emergentes de prostituição e tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, onde se faz necessária a presença Oblata; e isso nos desafia a deslocar-nos em direção às fronteiras geográficas, existenciais e virtuais.   

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