Trauma e superação da violência doméstica

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LAURENT HAMELS VIA GETTY IMAGES
Gagged woman, close-up, blurred
É impossível dizer o que ocorre no segundo do vacilo, se é que ele existe. O pequeno instante entre a mão se erguer e cair pesada sobre o corpo de outra pessoa.
O ciclo típico da violência doméstica entre casais – etapa de tensão, explosão da violência, arrependimento e lua de mel – é encurtado após um tempo de vício.
A “lua de mel” passa a ser menos frequente, o momento de arrependimento e pedido de desculpas passa a não ser mais necessário e o relacionamento sobrevive de tensão e luta intercalados.
É impossível dizer também o que faz de um agressor, agressor, de uma vítima, vítima. Eventos culturais, familiares, sociais e inclinações individuais vão desenhando a cena propícia para um enlace cheio de expectativas que se frustram no desafio cotidiano que ignora lugares inflexíveis de gênero.
O homem que não pode lavar a louça, a mulher que não pode ter autonomia.
Quando a resposta é a violência, as soluções vão ficando mais distantes.
“Claro que cada um tem uma história. Tentar traçar um perfil psicológico, tanto do agressor quanto da vítima, como se existisse um agressor típico ou uma vítima típica, é um erro. Os percursos pelos quais alguém se torna agressor são bastante singulares. Pessoas que passaram por agressões na infância e repetem esse comportamento de maneira irrefletida ou até mesmo, por exemplo, homens que sentem inveja das mulheres, porque uma mulher costuma ser objeto de desejo muito mais frequentemente do que talvez ele seja… enfim. Os motivos são diversos.” – conta o psicólogo Mathias Vaiano Glens, do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Motivações diversas, trajetórias semelhantes. Uma vez tomada a decisão da separação, a mulher será testada várias vezes.
A falta de suporte nos equipamentos de proteção a vítimas de violência, o machismo estrutural sendo repetido desde a delegacia até os corredores do judiciário, as falas que apostam na culpa da mulher, o despreparo da família e dos amigos para lidar com um problema grave e traumatizante, que pode colocar a vida de uma pessoa em risco.
Mas passada a etapa crítica da separação e suas possíveis consequências legais – ordem de restrição, guarda de filhos, partilha de bens – o assunto não está encerrado.
O agressor, via de regra, substitui a vítima com relativa facilidade, seus escrúpulos restam relacionados a uma possível condenação ou aos inconvenientes das medidas socioeducativas e o incômodo na reputação. Para a vítima, a história de violência pode ter consequências bem mais profundas e duradouras.
Ao trabalhar com o tema e ouvir histórias de diversas mulheres em situação de violência ou que deixaram relacionamentos abusivos nas mais diversas formas de incidência, surpreende o exaspero e a dor na narrativa mesmo após décadas, a vontade de ser acreditada, a falta de lugar na própria história, a lacuna de si.
“Não sei de onde eu tirei que eu não era capaz.”
Abuso físico, psicológico, sexual, patrimonial, injúria, ameaça, difamação e humilhação pública raramente ocorrem de maneira singular, um ou outro evento isolado. A sofisticação da estratégia relacional, com episódios que começam pequenos, insignificantes, e vão ganhando força e consistência na rotina da relação demonstram que o que parecia um impulso, um momento ruim, um deslize, na verdade guardam premeditação ou condução intencionada e lúcida, construindo um discurso verbal e não-verbal que levam a vítima a descrer em seu potencial e acreditar na posição necessária do agressor.
“Talvez o que a gente possa falar de uma maneira mais genérica é que essas pessoas vão aprendendo ao longo da vida que a violência é uma linguagem, é uma maneira de se comunicar com o outro. A violência comunica lugares de poder. Por meio de um xingamento ou de uma agressão física eu estou comunicando quem manda aqui, quem toma decisões. A violência comunica coisas que recolocam o lugar de submissão da mulher e de dominação do homem.” A coação, rica em expressão, é o lugar de fala. A submissão, o silêncio e a reiterada punição pela qual passam suas vítimas expressam o quê? Qual a consequência de guardar para si eventos traumáticos associados à restrição de suas capacidades decisórias, ao uso de seu próprio corpo, ao acesso ao dinheiro ou a pessoas de seu afeto? Clique aqui e assista à entrevista com Mathias Glens.

*Se você precisa de serviço psicológico especializado, procure os Centros de Atendimento para Mulheres Vítimas de Violência na sua cidade e se informe sobre os direitos previstos na aplicação da Lei Maria da Penha. Ligue 180 se você for uma vítima de violência. Denuncie!

**Para entrar em contato com Mathias Glens, acesse o Twitter@GlensMathiasou o sitehttp://psicologiacast.com.br
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Conteúdos do blog

As publicações deste blog trazem conteúdos institucionais do Projeto Força Feminina – Unidade da Rede Oblata Brasil, bem como reflexões autorais e também compartilhadas de terceiros sobre o tema prostituição, vulnerabilidade social, direitos humanos, saúde da mulher, gênero e raça, dentre outros assuntos relacionados. E, ainda que o Instituto das Irmãs Oblatas no Brasil não se identifique necessariamente com as opiniões e posicionamentos dos conteúdos de terceiros, valorizamos uma reflexão abrangente a partir de diferentes pontos de vista. A Instituição busca compreender a prostituição a partir de diferentes áreas do conhecimento, trazendo à tona temas como o estigma e a violência contra as mulheres no âmbito prostitucional. Inspiradas pela Espiritualidade Cristã Libertadora, nos sentimos chamadas a habitar lugares e realidades emergentes de prostituição e tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, onde se faz necessária a presença Oblata; e isso nos desafia a deslocar-nos em direção às fronteiras geográficas, existenciais e virtuais.   

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