Festas juninas acionam todos meus gatilhos de rejeição

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“A gente podia marcar uma [festa] junina, hein?”. Recebi essa mensagem ontem à noite no grupo de whatsapp das amigas com quem trabalhei há alguns anos. Apesar da ansiedade que convites para sair me causam, aceitei. De repente eu estava andando pela casa comendo tudo que continha glúten e me sentindo completamente vulnerável.
Monique dos Anjos para o Portal Geledés
Comecei a antecipar os acontecimentos me perguntando se alguém se interessaria por mim, se eu trocaria telefone com um menino bonito ou pelo menos receberia um correio elegante. Imaginei se eu teria a roupa certa, se minhas amigas não me deixariam sozinha depois de serem tiradas para dançar e se eu teria que voltar para casa desacompanhada. Mas o pior cenário foi me imaginar ficando com o boy mais chato do rolê num acordo silencioso entre duas pessoas que sobraram e decidiram descer juntas ladeira abaixo em busca da autoestima perdida. Resumindo, me senti exatamente como me sentia quando tinha 14 anos.
Eu disse 14? Quis dizer oito, nove anos. Quando se é uma menina negra, a chegada do mês de junho anuncia o pavor do que está por vir: as festas juninas. Na sala de aula meninas estão sempre em maior número e sendo nós, negras, as mais altas, formamos pares com outras meninas, nos resignando com o fato de que nosso gênero costuma ser sempre anulado.
Não basta não ser a noiva, precisam deixar a gente no final da fila. Mas pelo menos nos deixam usar vestido e chapéu. Chapéu que não encaixa na nossa cabeça (ou seria o nosso cabelo que não se encaixa no chapéu?) fazendo com que aquelas duas trancinhas de canecalon coladas na aba fiquem ainda mais ridículas do que a situação toda. Fazer o quê? A sorte é não precisar de maquiagem. A pele retinta não permite que as pintinhas caipiras apareçam.
Acontece que hoje sou uma mulher de 38 anos, feminista, casada, mãe de duas crianças, apaixonada pelo marido e adorada por ele em um grau que chega a levantar suspeitas. Mesmo assim, o simples fato de me imaginar em uma festa junina, segurando um copo do vinho quente que me dará dor de cabeça no fim da noite, fantasiada com bota de cowboy e levando no rosto um sorriso amarelado pelas luzes dos postes de rua faz com que a mulher supostamente empoderada dê lugar a uma menina insegura, desesperada pela validação do outro. E é assim todos os anos. Gatilho que chama?
Quando criança eu não entendia exatamente porque era sempre preterida. Sabia que tinha alguma coisa a ver com a vergonha que os meninos sentiam de estar ao meu lado, segurando minha mão na frente de todo mundo, embora às escondidas não fosse diferente. Levei muitos anos para compreender que eu poderia mudar meu cabelo, meu cheiro, meu jeito de sorrir e andar e mesmo assim continuaria deixada de lado. Tão desesperada que trocaria a barraca do beijo por aquela da prisão, só para deixar de ser invisível.
Eu não era feia. Nunca fui. Eu era uma vítima. Um subproduto da perversidade do racismo estrutural. Eu era a constatação de que a lavagem cerebral da MTV, Show da Xuxa, das capas da Capricho e do New Kids on The Block funcionava. Bonito era ser branco. Não que ser preto fosse feio. Ser preto era impensável. Na festa da escola, na quermesse do bairro e ao redor da fogueira do fim da rua simplesmente acontecia o que eu vivia o ano inteiro. A única diferença era a falta de receitas deliciosas de milho me ajudando a esquecer os problemas.
Corta para 2019. Ano do Homecoming. Da Maju nos jornais da Globo, da Iza mostrando a beleza da negra de pele retinta nas capas de revista e até da desesperada (e vergonhosa) moda do blackfishing. E mesmo assim, ainda vejo uma festa rodeada de estereótipos, brincadeiras machistas e altamente racista. Pode ser a inveja da menina que nunca tirada para dançar ou o fato das festas juninas terem tantas bandeiras coloridas e quase nenhuma preta. De um jeito ou de outro, quando descobri que na escola da minha filha não haveria dança com parzinho, senti uma leve brisa. Quase como aquelas que anunciam bons ventos de mudança.

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

Conteúdos do blog

As publicações deste blog trazem conteúdos institucionais do Projeto Força Feminina – Unidade da Rede Oblata Brasil, bem como reflexões autorais e também compartilhadas de terceiros sobre o tema prostituição, vulnerabilidade social, direitos humanos, saúde da mulher, gênero e raça, dentre outros assuntos relacionados. E, ainda que o Instituto das Irmãs Oblatas no Brasil não se identifique necessariamente com as opiniões e posicionamentos dos conteúdos de terceiros, valorizamos uma reflexão abrangente a partir de diferentes pontos de vista. A Instituição busca compreender a prostituição a partir de diferentes áreas do conhecimento, trazendo à tona temas como o estigma e a violência contra as mulheres no âmbito prostitucional. Inspiradas pela Espiritualidade Cristã Libertadora, nos sentimos chamadas a habitar lugares e realidades emergentes de prostituição e tráfico de pessoas com fins de exploração sexual, onde se faz necessária a presença Oblata; e isso nos desafia a deslocar-nos em direção às fronteiras geográficas, existenciais e virtuais.   

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