Durante a crise pandêmica que o mundo vive na atualidade convencionou-se o uso da frase “fique em casa” como orientação sine qua non para o combate da Covid19. Porém, viver num país estruturalmente racista como o Brasil, a casa (lugar que deveria nos possibilitar conforto e sossego) para a população negra não é um lugar de plena segurança. Trazemos aqui um texto de autoria da socióloga Laíse Neres, publicado na Revista Quilombo, no qual trata-se sobre a necropolítica, genocídio da população negra e a importância da Interseccionalidade para leitura e discussão desta problemática.
Por Laíse Neres*
“Fique em casa” é o discurso de ordem neste momento pandêmico em que vivemos, “É para salvar vidas”, eles dizem. Mas, ser uma pessoa negra no Brasil é correr riscos constantes dentro ou fora de casa, com ou sem Covid-19.
João Pedro Mattos (14) morreu no dia 18 de maio com um tiro no abdômen, enquanto brincava na sua casa invadida pela polícia em mais ação uma desastrosa. Hoje, João Pedro, se soma às elevadas estatísticas de jovens e crianças negras exterminadas frente à necropolítica do Estado Brasileiro. Estamos por nossa própria conta e diante de uma política de extermínio, que ao se apropriar destas vidas, define quem deve ser deixado para morrer, bem como a quem deve matar. “Deixar morrer” inclui políticas ineficazes para enfrentamento às desigualdades sociais que em uma larga escala, não garante saúde digna para todas e todos, como não garante segurança, emprego e renda, educação para uma vida mais justa e humana. Ao realizar o recorte racial dessas estruturas é possível perceber que é a população negra a mais desassistida e, portanto, é a mesma deixada à mercê da morte, num país onde falta todo tipo de assistência social ao seu povo, falta até leitos numa crise de saúde, mas sobra balas nos corpos negros periféricos
A Segurança Pública no Brasil atesta seus pressupostos históricos de racismo, onde o estereótipo do negro é sempre lido como suspeito, frente à uma política de extermínio do “primeiro atira e depois verificamos quem é”. Assim, segue a necropolítica nas periferias brasileiras onde o SUS ainda não dá conta de atender as especificidades locais, onde as escolas não são atrativas e estruturadas, onde não há emprego e renda, um conjunto de faltas que mantém as condições ideais para que estas populações estejam em situações mais vulneráveis, em duvidosos confrontos com ações policiais disfarçadas de “guerra às drogas” a matar corpos inocentes que já nascem suspeitos.
Hoje, João Pedro, se soma às elevadas estatísticas de jovens e crianças negras exterminadas frente à necropolítica do Estado Brasileiro.
Em 2019, segundo o portal de notícias G1, cerca de 5.800 pessoas foram mortas em ações da polícia e essas pessoas possuíam uma cor e uma classe social específicas, na sua grande maioria homens e jovens negros. Essa é a confirmação de que o Estado além de lucrar com os baixos investimentos nas comunidades, mantém o status quo que segue o padrão cis, heteronormativo, branco, patriarcal, hereditária das capitanias, acirrando as injustiças e fortalecendo o sistema capitalista, que se mantém sobre as estruturas desiguais de gênero, raça e classe.
Enquanto houver racismo, a população negra não estará segura em nenhum lugar, nem mesmo dentro de casa porque em público, para eles, somos duvidosos, “feios” e perigosos, no privado temos que nos abaixar para tentar nos protegermos das balas que alvejam nossas casas.
Por isso, o “Fique em casa”, aos poucos, se torna mais um discurso pronto e vazio diante de uma leitura interseccional nas perspectivas de raça e classe, e escancara no momento pandêmico o drama que o preto vive todos os dias: a morte. A maior crise do Brasil quem é preto já conhece porque o “vírus do racismo” é que revela a crise ética no país.
*Reflexão de Laíse Neres, Socióloga, militante dos direitos humanos e moradora de Beiru, em Salvador (Ba).
Vejo texto na íntegra no site da Revista Quilombo.
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