Leitura de fatos violentos publicados na mídia
Ano 13, nº 08, 31/05/2013
De volta a 13 de dezembro de 2012. A Rádio Jornal 820 AM noticia: “Goiânia soma 11 mortes de moradores de rua em 38 dias”. O primeiro parágrafo da matéria é iniciado com a lista de oito nomes de vítimas e com a informação de que três dos 11 mortos não foram identificados.
Michel tinha como apelido Rondônia, nome do seu estado natal, “foi encontrado morto na porta de uma clínica”. Ao vê-lo no chão, um médico quis acordá-lo, porém não era mais uma manhã igual às outras, ele foi o décimo primeiro morador de rua que foi morto em pouco mais de um mês (38 dias) na cidade de Goiânia.
Um delegado da Delegacia Estadual de Investigações de Homicídio informou que a vítima era usuária de crack “e, possivelmente, foi assassinado com um golpe de objeto contundente na cabeça, ou seja, uma paulada”. Esta suposição do delegado é anterior ao laudo do Instituto Médico Legal.
Para o delegado, estas vítimas não são moradores de rua comuns, elas se distinguem por serem usuárias de entorpecentes. Segundo ele, as mortes estão relacionadas com os conflitos entre usuários. Não considera, portanto, que exista “um grupo de extermínio para matar moradores de rua. As mortes são geralmente a paulada, facada ou pedrada, o que o indica que o autor estava próximo e é conhecido da vítima”.
Em 18 de dezembro de 2012, entre as manchetes da edição do SBT Manhã, tem-se: “Número de moradores de rua mortos em Goiânia chega a 14”. Desta vez, de acordo com a polícia, a vítima foi ferida na barriga por tiros de arma de calibre 9 mm, de uso restrito da polícia. Suspeita-se de crime de execução.
Em meados de abril de 2013, o assunto já havia adquirido repercussão através de várias mídias de alcance em todo o País. No dia 15, é noticiada a morte de número 28, pelo Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão: “Mais um morador de rua foi assassinado em Goiânia – o 28º desde agosto”. No dia seguinte, o “bordão” é acrescido de “mais um” e “mais um”. E é chegada a trigésima vítima que também morrera no dia 15 e foi alvo de notícias em 16 de abril.
O caráter contábil das mortes e a insistência das autoridades policiais do Estado de Goiás em relacioná-las ao tráfico de drogas antes mesmo de averiguações mais consistentes sugerem, de modo indireto, um valor negativo mais profundo para as vítimas. De um modo geral, os moradores de rua são duramente estigmatizados, dando-se a impressão de que representa o último grau possível de estigmatização, entretanto, a mortandade em Goiânia abriu espaço para um tipo de morador de rua ainda mais desqualificado: o morador de rua envolvido com o tráfico.
Parece que estes sujeitos, em 12 de agosto de 2012, se reuniram em assembleia e decidiram se matar entre si. É como se tivessem deliberado pela antecipação da terceira guerra mundial no que tange à sua comunidade. Para caracterizar o conflito, definiram que usariam como armas: facas, porretes, pedras, ou objetos que evidenciassem que a ação violenta foi praticada por uma pessoa que estivesse próxima da vítima. Mas não, não pode ser esta a interpretação dos acontecimentos, afinal, de acordo com a opinião do delegado, “os crimes não têm relação uns com os outros”.
A tese policial, ao que parece, aposta em uma grande coincidência. E, de repente, cada morador de rua por seu lado, decidiu matar um colega. A tese da coincidência contribui para que seja superada a impressão de que há uma onda orquestrada de violência contra moradores de rua e, com isso, o problema ganha feição de “coisa deles”, eles que seriam os piores entre os piores. A pior seleção de seres humanos estaria se auto-exterminando, de modo incontrolável, cabendo à ordem pública fazer o exercício contábil e rotular as vítimas de qualificações compatíveis, de acordo com a moral hodierna, com as suas mortes e livrar todas as outras instâncias possíveis de qualquer suspeição.
Com esta espécie de salvo-conduto geral, segue o medo dos moradores de rua, o pavor de corresponder a “mais um mendigo morto em Goiânia”, ampliando o número e sem fechar a conta.